De quando voltei a ser Indígena: uma história de emergência cultural

Por Avelin Rosana*

“Os povos indígenas
emergentes são povos indígenas que em um dado momento histórico pararam de se reconhecer como tal e que, a partir de um novo contexto histórico, passaram a reafirmar esta identidade.”



Afirmar minha identidade e fortalecer a luta indígena vou contar minha própria história de emergência ou etnogênese.
Venho de uma família de migrantes, o nomadismo no sangue desde as raízes mais ancestrais, mas para não alongar demasiado essa história vou começar a partir de meus pais.Meu pai, filho de pai Tapuio e de uma mãe filha Africanos escravizados cresceu no interior de São Paulo, trabalhando nas lavouras, mas nunca se habituando à vida na roça.

Minha mãe filha de mãe Indígena e pai desconhecido cresceu no sertão Pernambucano, vivendo em grande situação de pobreza. Mas nunca se rendeu a “venda” de meninas para “trabalhar” como domésticas em São Paulo atividade recorrente no sertão.

Sendo assim com histórias tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidas se encontraram no sertão Pernambucano por conta de uma obra (meu pai havia saído enfim da roça e se tornara peão de obra) e minha mãe trabalhava para os empregados da empresa lavando, passando e cozinhando para ajudar no sustento da mãe e do irmão mais novo. Desse encontro nasceram três filhas. Eu, Avelin, a caçula sou a que vos fala.
Então com as obras a família viajou por muitos estados e meu pai em busca de sempre dar boas condições de vida á família também foi para o exterior. Nos finais dos anos 80 nos estabelecemos em Belo Horizonte. A adaptação foi difícil especialmente para a minha mãe e para mim que tinha uma sensação horrível de inadequação. Na escola tive problemas nos anos iniciais, chorava muito e sofria perseguição por ser “diferente”, quase desisti de estudar.
Minhas irmãs seguiam normalmente a vida de adolescente, sem grandes alterações, pelo menos que eu saiba. Talvez tenham passado seus percalços em silêncio.

Enfim, consegui fazer o ensino médio de certa forma me situei assumindo minha forma “estranha” de ser, mesmo assim perambulava entre tribos urbanas e ainda me sentia uma estrangeira. Em casa a luta pela sobrevivência prevalecia sobre qualquer aspecto cultural pré-existente. Trabalhar e trabalhar, nossa família destoava dos vizinhos porque sequer as igrejas frequentavam nenhuma delas.

Quando desisti do terceiro curso universitário resolvi trilhar outro caminho fui morar na Amazônia como voluntária em uma ONG, lá havia muitos cursos transculturais e meus primeiros reencontros com os parentes se deram. Tive grandes mestres lá, linguistas, antropólogos, tradutores, gente de coração humilde, cozinheiras sensacionais, pescadores gentis, ribeirinhos, especialistas em malária e indígenas de muitas etnias. Dessa organização conheci o povo Suruwahá onde uma guerreira me batizou de Buniacá. Começa aí minha etnogênese.
Voltei do norte apaixonada pela cultura indígena e a sensação de pertencimento tão desejada a vida inteira finalmente aconteceu. Algum tempo depois morei em Brasília onde se reuniam muitas etnias na luta por uma vida mais digna e na luta por direitos. Dessa vivência nunca mais fui a mesma.

De volta a Belo Horizonte decidiu pelo curso de Ciências Sociais, a parte de antropologia me encantou profundamente e nas conversas em casa geralmente na cozinha começávamos a desenterrar nossas raízes.Minha mãe assumiu sua indianidade a muito escondida pelas urgências de sobrevivência na cidade grande e começamos a reencontrar os parentes.Em Belo Horizonte a presença dos artesãos e a precariedade com que eram tratados chamou nossa atenção para a necessidade de uma organização que lutasse por nossos direitos.Assim com as mobilizações de 2012 pelos Guarani Kaiowá outras pessoas se juntaram a nós e formamos o Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas- Aldeia Umuarama, um coletivo multiétnico e multicultural de referência a nossos parentes em situação urbana ou em trânsito por Belo Horizonte.

Da luta ao dia a dia não consigo mais conceber a vida sem a cultura indígena, sem a pintura a música,o artesanato, a luta, a lágrima a alegria e a dor.E a cada dia a indigenização se torna mais forte a cada dia me torno mais indígena e esse processo garças a Tupã é irreversível.
Essa é a minha história,de renascimento de quem nasceu indígena se perdeu na selva de pedra e teve que renascer em outro povo pra poder dizer hoje com convicção que achei meu lugar no mundo. Posso gritar que sou indígena e tenho muito orgulho disso!

#direitosIndigenas
#Pec215não
#Indigenize

*Avelin Rosana é uma das autoras de Nós da Poesia e integrante do Instituto Imersão Latina desde a sua fundação.

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